A caminhada de Luciana entre Arraias (TO), o Cerrado e a ancestralidade quilombola

A cidade de Arraias tem características que não a deixa passar despercebida em relação aos outros 138 municípios do Tocantins. É a cidade tocantinense mais alta com 712m de altitude, o que garante uma temperatura mais fresquinha no Cerrado, especialmente durante à noite.

Fundada em 1740, Arraias é um dos territórios mais antigos do Estado. A história do local é atravessada pela população negra do país, com a vinda de inúmeras pessoas que resistiram da escravidão na Bahia e em São Paulo. E 285 anos depois, as raízes permanecem visíveis na pele de parte das 10.511 pessoas que vivem na cidade, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE).

É nesse lugar que fica um dos câmpus da Universidade Federal do Tocantins (UFT), que oferece os cursos de graduação em Direito, Educação do Campo, Matemática, Pedagogia, e Turismo Patrimonial e Socioambiental. Além do Programa de Mestrado Profissional em Matemática (ProfMat) e Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática no Tocantins (PPGEMaT).

No Câmpus de Arraias foram formadas 1768 pessoas. Dessas, 730 são pessoas autodeclaradas pardas e 453 autodeclaradas pretas. Isso significa que 67% dos egressos da UFT em Arraias são pessoas negras. Uma dessas pessoas é Luciana Piedade da Cunha, nascida em Arraias há 40 anos, mãe solo de quatro filhos e recém-formada em Turismo Patrimonial e Socioambiental.

Mãe solo, mas não porque queria ser

“Sou mãe de quatro filhos, mãe solo, não porque eu queria ser, mas porque a vida me deu essa opção e esse desafio, e eu tive que arcar com ele”. A Kamila Evelyn (20), é a mais velha e já é mãe do Anthony (2). O Hebert (18), a Liara (12) e o Hiago (11) moram com Luciana. “Meus filhos são a melhor coisa da minha vida. A melhor herança que posso deixar. Tento ensinar sempre o melhor para eles. Percebo que hoje eles são mais felizes porque veem a minha mudança. Antes eu era triste, sem perspectivas. Hoje eu sou alegre, tenho metas, sonhos. E isso reflete neles. Eles têm orgulho e a perspectiva de também fazer faculdade”.

Ela veio da roça em que morava com os pais aos 7 anos porque estudar já era obrigatório. “Cresci com o sonho de estudar. Sempre estudar. Mas vieram os empecilhos. Primeiro eu tive os filhos, para depois correr atrás dos estudos. Mas sempre acreditei que a educação muda vidas, muda histórias e trajetórias. E sempre ensino isso para os meus filhos: estudar é o caminho”.

Luciana passou um tempo fora, antes de se separar do ex-marido e retornar para Arraias com os filhos. “Quando voltei definitivamente, decidi que ia estudar. A faculdade estava ali, tão perto, e eu já tinha perdido tempo demais. Comecei a tentar o Enem todos os anos. Entrei com a visão de apenas ter um diploma. Mas o curso de Turismo transformou minha vida. Me moldou. Participei de muitos eventos, viagens e atividades da universidade”.

Fazer caber o Cerrado em uma caixa

Há dois anos surgiu o Acelerae na vida de Luciana, programa da Incubadora da UFT. O projeto dela foi aprovado: o Cerrado na Caixa. Depois disso vieram só coisas boas. “A faculdade mudou totalmente a minha vida. Tento passar isso para minhas colegas, muitas mães solo como eu. Sempre digo: estudar muda tudo. Amei Turismo, principalmente por ter Gastronomia. Não é só cozinhar. É reinventar o alimento. E isso me move”.

No Cerrado na Caixa, Luciana reinventa produtos como o capuccino de jatobá. “Criei receitas e pesquisei ingredientes. Não quero parar. Já fiz o curso de guia, hoje sou guia. Comecei a especialização em Atrativos Naturais e Culturais. Uma coisa puxa a outra. Hoje eu vejo além do que eu via antes. Eu não tinha perspectiva de vida, e agora tenho”.

Luciana diz que o que mais a encanta é a felicidade dos filhos quando comem algo simples, como arroz com verdura e carne, e elogiam. “Não sei se é porque comida de mãe é boa, mas eles sempre falam. Comida é arte. E alimento não é só arroz e feijão. É tudo que te satisfaz. O Brasil tem tanta possibilidade e tanta gente passando fome… Se as pessoas aprendessem a reaproveitar o que têm no quintal, muita coisa mudaria. Lá em casa, por exemplo, comemos abóbora com casca. Tem mais nutrientes ali. Meu pai reclama: ‘Aqui é a única casa que eu como abóbora com casca’, mas come”.

A professora Ana Paula Garcia, do curso de Turismo Patrimonial e Socioambiental, faz a mentoria de Luciana no projeto Cerrado na Caixa. Ana Paula afirma que a trajetória da Luciana é um lembrete de que quando uma mulher assume sua história, ela transforma tudo ao redor, inclusive o futuro. “Para mim, sempre foi muito claro que o que ela faz vai muito além de gastronomia. Falar da Luciana é falar de força, de delicadeza e de uma capacidade rara de transformar território em propósito. Ela traduz em receitas tudo aquilo que aprendeu com a família, com as mulheres quilombolas que vieram antes dela e com o Cerrado que sempre foi seu primeiro mestre”.

A mentora acrescenta que o que mais a inspira na trajetória de Luciana é o compromisso com outras mulheres. “Ela poderia fazer disso apenas um negócio, mas escolheu transformar em movimento. A Luciana levanta outras mulheres, compartilha conhecimento, cria caminhos onde antes só havia dificuldade. Ela empreende com generosidade, e isso faz toda a diferença. A Luciana representa o que o Cerrado tem de mais bonito: resistência, abundância e reinvenção”.

Identidade quilombola e pertencimento

A herança quilombola de Luciana vem pelo avô materno. Ao participar de um projeto em uma comunidade quilombola, percebeu que tudo o que estavam vivendo ali, ela também já tinha vivido na infância.

“Eu não tinha clareza da importância de assumir essa identidade. Talvez por falta de informação. Mas a universidade me trouxe essa visão. Foi recente, dentro do curso de Turismo, especialmente com disciplinas sobre ancestralidade e antropologia. Hoje eu digo: se eu sou descendente, eu sou quilombola. E quero assumir isso. Descobri que meu avô era do Vão de Almas, no município de Cavalcante (GO) e os bisavós também têm história em Santa Teresa, no Mimoso, município de Arraias. Pretendo buscar essa história”.

Ela acrescenta que o curso de Turismo ajudou ela a entender sua própria história. “Na casa do meu pai há muitos objetos e utensílios antigos que são resquícios quilombolas e eu não percebia o valor até estudar isso: tear, roda de fiar, coxinil (tapete para cela), pote de barro antigo, panelas de ferro hereditárias, cangaia, alforge. Quando vou para lá é uma imersão”.

A UFT implantou a política de cotas para estudantes quilombolas desde 2013. Desde então, a UFT graduou 262 pessoas quilombolas em 12 anos e, atualmente, tem 556 estudantes quilombolas matriculados, segunda dados da Pró-Reitoria de Graduação. Mas a Luciana não entra nesses dados porque oficialmente ela não está registrada como quilombola. Isso mostra como a população quilombola, na verdade, está subnotificada.

De acordo com o professor Adão Francisco, pesquisador no tema sobre quilombolas, os dados do Censo Demográfico do IBGE têm revelado, década após década, que por causa do racismo estrutural, a população negra do Tocantins não se assumia enquanto tal. Com a garantia de direitos inscritos em nossa legislação após a Constituição de 1988 e à medida em que, já no século XXI, esses direitos foram sendo implementados mediante políticas públicas, essa realidade foi se transformando. Isso se verifica no aumento do número de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas nas três últimas pesquisas, chegando à proporção de 75% da população no Censo de 2022, ou seja, ¾ de negros.

Parte significativa desse percentual é originária do Tocantins e, muito certamente, com vinculação distante com a sua população quilombola. Em que pese este mesmo Censo ter registrado 12.881 quilombolas no Estado, é importante compreender que esse número se refere àqueles que hoje vivem em território identificado como remanescente de quilombola. Segundo a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO), em 2024 havia 52 comunidades certificadas pela Fundação Palmares.

“A questão que se coloca aqui é a baixa autoidentificação de quilombolas nos contextos urbanos, especialmente nas cidades maiores. Pela fragilidade histórica da prática cotidiana nos contextos urbanos, remanescentes de quilombolas foram perdendo a sua identidade ao longo das décadas e deixando de reconhecer a sua origem histórico-social”, explica Adão.